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Erros da Igreja no caso "The Keepers"

Atualizado: 21 de jul. de 2023



Antes de qualquer coisa, é preciso dizer: Não acho que seja oportuno a todos terem acesso a essas produções que tratam casos de abusos - por questão de sensibilidade ao tema, maturidade e história de vida. E também porque não é um assunto para ser enfrentado só por curiosidade.

"The Keepers", série documental da Netflix, é uma das coisas mais sórdidas que eu já assisti. São tantas coisas horríveis sendo narradas que é difícil não ter o sentimento de repulsa a tudo o que é apresentado. Me causou a sensação de "embrulho no estômago" assim como o filme "Obediência perfeita" e o "O bosque de Karadima", sobre os quais falarei em outras oportunidades.


De modo breve e sem muitos spoilers: É uma série investigativa sobre o sumiço e assassinato de uma freira acontecidos em novembro de 1969. A Irmã Cathy Cesnik era muito querida por suas alunas e essas nunca se deram por satisfeitas com o fato do processo criminal não desvendar as causas e os responsáveis pelo sequestro e assassinato da Irmã, por isso, de modo independente e amador, elas passaram décadas pesquisando o que poderia ter acontecido naquela ocasião.


No meio dessa trama surge um outro drama, o dos abusos sexuais sofridos por Jean Wehner, no Colégio onde a Irmã Cathy trabalhava - na época Jean era uma adolescente de 14 anos. É aqui que a história se torna mais relevante para nós e pode nos ensinar muito a partir daquilo que chamamos de "o magistério das vítimas" que ao nos contarem suas histórias nos ensinam muito mais sobre toda a difícil realidade dos abusos do que inúmeros cursos teóricos.



Jean estava com 38 anos, era casada, mãe de dois filhos, ministra da eucaristia em sua paróquia e participava de inúmeras atividades pastorais na igreja, ela tinha uma intensa vida comunitária paroquial. Tudo ia muito bem em sua vida até que a família resolveu comprar uma nova casa, a corretora de imóveis era uma conhecida dos tempos de colégio e a convidou para participar do reencontro da turma que aconteceria em breve. Diante do convite, a senhora Wehner percebeu que tinha uma certa resistência interior em querer estar com as pessoas do colégio para fazerem memória dos tempos de adolescência.


Com o passar dos dias, ela começou a ter algumas lembranças sobre o que tinha sido a sua experiência naquela época. Se sentindo profundamente incomodada e confusa, resolveu dedicar-se durante toda a quaresma de 1992 a um tempo de maior interiorização e oração por tudo o que estava vindo à tona.




Sem grandes detalhes sobre a história, fato é que a vida de Jean não tinha sido nada fácil!

No ambiente familiar, tinha sido abusada por um tio.


Quando, na escola, buscou confissão e conseguiu falar sobre o assunto com o responsável pelo serviço religioso do colégio, Padre Neil Magnus, ele, percebendo a vulnerabilidade da garota, começou a fazer perguntas sobre os abusos, a revitimizá-la, e ela conta que algumas vezes enquanto estava no confessionário, conseguia perceber que do lado de dentro o padre mantinha o olhar fixo nela, fazia perguntas sobre os abusos querendo saber detalhes e, do lado de dentro, se masturbava enquanto ouvia os relatos.







Algum tempo depois, ela começou a ser chamada na sala do capelão do colégio, o Padre Joseph Maskell, que passou a estuprá-la recorrentemente, algumas vezes na presença de outros homens adultos que eram convidados a fazer o mesmo com a jovem. Dentre esses outros adultos, um era religioso e os demais eram policiais. Os abusos não se iniciaram como estupros diretamente, eles tinham o forte elemento de abuso religioso, como sempre acontece nos casos de abusos que vemos em ambiente eclesial. O Padre Maskell dizia para Jean que ela era impura, uma vadia, uma pessoa ruim, mas que o Espírito Santo queria purificá-la e estava fluindo através do p*nis dele. Ao final do abuso, reconfigurava a situação de modo espiritual: "É por isso que Deus não pode te ajudar, você gosta muito de fazer coisas ruins. Preciso rezar muito por você!" E a menina era colocada para fora de seu escritório e devia voltar para a aula. Por vezes, durante o horário escolar, no autofalante, era anunciado o nome de Jean e ela deveria se dirigir ao escritório do padre, onde os abusos de multiplicavam. Acontecia do nome de outras meninas serem anunciados da mesma forma e delas terem que comparecer ao escritório do abusador.



Conforme as lembranças foram surgindo na memória de Jean, ela buscou conversar com o seu pároco e ele a encaminhou para conversar com um padre responsável na Arquidiocese. Inicialmente ele a ouviu e disse que juntos iriam solucionar a situação, que precisavam agir com cautela porque o Padre Maskell era inteligente e arrumaria um jeito de escapar.


Foram inúmeras reuniões com os representantes da Arquidiocese de Baltimore e seus advogados, mesmo sendo uma situação muito difícil para uma vítima se expor e contar a sua história diante de um outro padre e de advogados, Jean estava dando o seu melhor e tinha esperança que algo pudesse mudar, embora confidencie que todas as vezes que ia ao escritório da Arquidiocese se sentia aterrorizada pela possibilidade de encontro com o padre seu agressor.


O processo seguia em segredo e a atitude da Arquidiocese era a de dizer que só poderia levá-lo adiante se houvesse a confirmação dos relatos a partir da experiência de mais uma pessoa, que seria necessário que a vítima dissesse o nome de outras possíveis vítimas para que elas fossem chamadas para depor. Jean diz, em seu depoimento para a série:

"Eu estava vivendo um inferno e não queria colocar mais ninguém nessa situação. Se mais alguém quisesse falar, deveria fazê-lo por conta própria!"

Algum tempo depois, as lembranças foram ficando mais claras e ela se lembrou de ser abusada também pelo Irmão Bob e por policiais amigos do Padre Maskell, que tinha grande proximidade com a polícia, andava sempre armado e achava que sempre se manteria impune devido a essa proximidade.

Ao relatar as novas lembranças e dizer o nome de mais abusadores, ela percebeu irritação da parte dos representantes da Arquidiocese, eles queriam que ela desse o nome de vítimas e não de mais criminosos.

Em paralelo, na série, é reconstruída a trajetória do Padre Maskell: ficou no colégio até que uma freira linha dura chegasse e começasse a receber reclamações dos pais, ela então deu 15 minutos para que ele juntasse suas coisas e deixasse a escola. O padre foi então trabalhar no departamento escolar da Arquidiocese e depois foi transferido para uma paróquia, onde já fazia 10 anos que atuava quando Jean começou a fazer suas denúncias. Então, ele foi colocado numa clínica onde sairia do contato direto com os fiéis e diminuiria o risco de um escândalo acontecer na mídia.


O responsável de psicologia do "Hartford Hospital Institute of Living", clínica para onde habitualmente a Arquidiocese de Baltimore enviava padres, conta que recebia alguns clérigos para o tratamento de internação, sempre o que era dito era sobre os problemas serem de depressão, de relacionamento com as outras pessoas e com as autoridades, mas ao chegarem para o tratamento, os pacientes não demonstravam essas dificuldades e falavam que o problema era ter feito sexo com menores de idade e que o bispo, por medo da repercussão do caso, os havia enviado para serem internados. Diante da repetição de tal situação, o responsável clínico ligou para o bispo para tirar satisfação e comunicar que só receberia pacientes que fossem enviados junto de seus prontuários médicos mostrando a veracidade da necessidade de tratamento e que eles não estavam ali para proteger a Arquidiocese da vergonha de ter um padre preso. Nunca mais a clínica recebeu nenhum paciente indicado pela Arquidiocese.



Eu não vou contar o fim da história, não darei spoiler, e acho que tudo o que já foi dito até aqui já pode nos ensinar muito sobre a realidade dos abusos que, infelizmente, estão presentes também no ambiente eclesial.


Quero destacar alguns pontos que acho que valem a pena não passarem despercebidos neste caso e que tantas vezes se repetem nas outras histórias:

1. Jean Wehner era uma adolescente mais vulnerável que as demais, ela já tinha sido abusada em ambiente familiar (pelo tio). Os abusadores em ambiente eclesial viram nela uma "presa fácil" porque poderiam usar a culpabilidade que ela já tinha quanto aos abusos sofridos em favor do discurso abusivo deles.


2. Durante décadas, a memória de Jean sobre os inúmeros e sórdidos abusos sofridos se manteve apagada, não influenciavam a sua vida cotidiana. Sua experiência familiar, social, afetivo-sexual, pastoral, comunitária... Tudo ia muito bem até que 27 anos depois de acontecidos, os abusos começaram a voltar, pouco a pouco, à sua mente. Muitas vezes, as vítimas, por mecanismo de defesa, "apagam" de suas memórias os abusos sofridos e parecem nunca terem vivido nada disso até que algum gatilho aconteça e as lembranças comecem a aparecer. É neste momento que as estruturas de acolhimento e escuta devem estar disponíveis para as vítimas.


3. É preciso ter cuidado na acolhida das vítimas. Jean tinha que ir no prédio da Arquidiocese e sempre era aterrorizada pela possibilidade de lá encontrar com seu abusador. Ela era ouvida por um padre (mesmo categoria social-religiosa de seu algoz) e por advogados, um ambiente não acolhedor e desconfortável para a vítima. Foi exigido dela dizer o nome de mais vítimas para que o processo pudesse seguir, ou seja, colocaram no ombro da vítima o peso de fazer o processo avançar, a Diocese, sabendo da denúncia deveria por si mesma iniciar investigações sérias sem expor a vítima ou impor sobre ela um peso a mais além de tudo o que já tinha sido a sua experiência.


4. Não buscar solucionar os casos, mas apenas os tirar os abusadores de circulação durante algum tempo para evitar escândalos na mídia foi, infelizmente, uma prática adotada em inúmeras dioceses pelo mundo e que só fez com que os problemas continuassem crescendo. Um padre internado para sair de circulação e dar tempo "da poeira abaixar", volta a atuar nas realidades pastorais tendo os mesmo desequilíbrios que antes o levaram a cometer os abusos. A Igreja, através do Papa Francisco, tem sido clara: diante de denúncias de abusos, tratar os casos com seriedade, não acobertar nada e nem ninguém e processos canônicos e jurídicos devem ser instaurados para as devidas investigações e punições, se os abusos forem confirmados.



▶ Quem quiser conhecer Jean Wehner, ela usa o instragram para divulgar o livro onde dá seu testemunho: https://www.instagram.com/walkingwithaletheia/


▶ A série "The Keepers" tem 7 episódios. Tem uma história central pesada e outras várias tramas dramáticas fazendo parte dela. Os relatos sobre as situações de violência e abuso são bem pesados e dramáticos, não acho conveniente que todas as pessoas assistam sem um prévio discernimento sobre ser oportuno ter acesso ao conteúdo ou não.


Quem tiver denúncias para fazer, deve procurar os escritórios próprios para esse fim nas Dioceses e Congregações ou o Núcleo Lux Mundi da CNBB/CRB.


Se quiser saber mais sobre o assunto você pode o que já comentei a partir de outras produções:


E o que já postei de resenha de livros explicando:

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