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Ecos do II Congresso latino-americano de prevenção de abusos

Atualizado: 21 de jul. de 2023


Entre os dias 14 e 16 de março de 2023, aconteceu, em Assunção, no Paraguai, o II Congresso latino-americano promovido pelo CEPROME (Centro de Proteção do Menor) em parceria com a Pontifícia Comissão de Proteção do menor, que teve como tema (em tradução livre): “Dar atenção, informar e comunicar: chaves para uma gestão eficaz nos processos de abuso sexual”.


Eram cerca de 400 participantes (Cardeais, Núncio Apostólico, bispos, padres, religiosas e leigos), de mais de 25 países (não só da América Latina) presentes no evento, interagindo numa profunda troca de experiência e conhecimento, de forma muito fraterna.



As palestras ficaram a cargo dos maiores especialistas* do mundo nesta temática, que apresentaram o que há de mais atual, concreto e profundo sobre a questão das relações abusivas que acontecem em ambiente eclesial. Na parte da tarde, eram realizados workshops simultâneos, eu escolhi as oficinas relacionadas à comunicação e gestão, um dia fiz a sobre “Criação e comunicados de imprensa” e no outro a sobre “A gestão da crise em seis passos”.


A minha intenção aqui não é colocar um resumo de cada uma das falas, mas partilhar com vocês um apanhado geral do que ouvi no Congresso e que acho que pode iluminar a vida cotidiana de nossas Dioceses, paróquias, Comunidades e Movimentos.



São 12 os pontos que considerei mais relevantes e que resolvi complementar um pouco com minha reflexão pessoal:



1. A prioridade absoluta da Igreja deve ser o cuidado das vítimas.


Elas devem ser acolhidas, ouvidas, acreditadas, apoiadas, acompanhadas... Nunca devem ser julgadas, culpabilizadas, desacreditadas ou deixadas de lado.


A Igreja é Mãe de cada um dos fiéis e tem como função ser canal de salvação, por isso, para ser fiel à sua vocação e missão, precisa ter cuidado direto e pessoal por cada um de seus filhos, zelar pelo bem espiritual, moral e físico de cada pessoa.



2. Em hipótese alguma, os interesses institucionais devem ser colocados como prioridade.


A Igreja não tem a si mesma como finalidade, ela não foi constituída tendo em vista o seu próprio poder e reinado, mas o de Cristo, e, seguindo ao Seu Esposo e Cabeça, deve continuar Sua missão: servir a todos e ser canal de salvação.



3. A Igreja deve buscar fazer valer a justiça tanto quanto a misericórdia, mas a justiça tem precedência.


A precedência da justiça se dá porque, em muitos casos, misericórdia e perdão são confundidos com impunidade, não pode ser assim. Misericórdia e justiça devem caminhar juntas, revelando a face de Deus que é justo e misericordioso ao mesmo tempo.


A justiça deve ser vista, inclusive, como uma face da misericórdia que dá oportunidade para que aquele que está no erro seja corrigido, repare seus erros e possa seguir por um novo caminho mais virtuoso.



4. Todos os casos devem ser geridos de acordo com a legislação civil e penal do país, crimes devem ser denunciados.


A orientação da Santa Sé é que os casos de abusos devem ser denunciados também às autoridades civis e penais de cada localidade e os processos devem seguir seu curso natural nas instâncias civis e penais. As investigações, o tempo de prescrição, a coleta de provas, devem acontecer por parte da justiça civil e penal sem que a Igreja interfira, desencoraje ou obstrua seu trabalho.

👉🏼Pelo contrário, a Igreja é a primeira que deve colaborar com o trabalho das autoridades instituídas.



5. A Igreja precisa se desenvolver na capacidade de gerir crises e de se comunicar internamente (com seu próprio clero, com seus paroquianos e agentes) e também com os de fora.


Um dos grandes problemas que a Igreja tem enfrentado não é “só” a crise dos abusos vindo à tona, mas tudo isso é agravado pelo despreparo no gerir as crises de modo mais profissional, tendo comitês de crise instituídos, códigos de conduta, protocolos, porta-vozes treinados, que saibam como comunicar, quando comunicar e a quem comunicar cada uma das informações de interesse e de direito de cada um dos seus públicos.



6. A crise dos abusos não é um problema de cunho sexual, mas vocacional!


Talvez aqui esteja a informação que mais pode ajudar a Igreja a superar todo este momento obscuro de sua história. Leia de novo a afirmação: A CRISE DOS ABUSOS NÃO É UM PROBLEMA DE CUNHO SEXUAL, MAS VOCACIONAL!


A imaturidade afetiva e sexual dos seminaristas quando são ordenados compromete o modo como eles viverão o ministério sacerdotal. Essas imaturidades não trabalhadas em profundidade no tempo da formação inicial, começam a direcionar o modo de agir dos recém-ordenados.


Muitas vezes, já desde os tempos de seminário, outras vezes com o início do ministério, as pessoas imaturas começam a se “autodispensar” dos seus compromissos vocacionais (castidade, pobreza e obediência) e passam a se conformar a vivê-los de modo medíocre e aos poucos vão deixando de vivê-los e assumem um novo jeito de ser, se deixam levar pela vida dupla.



7. Em média, os agressores têm por volta de 40 anos quando começam a apresentar problemas.


Os processos canônicos mostram que a média de idade dos agressores é de começarem a ter comportamentos reprováveis e que são denunciados, perto dos 40 anos. Esse dado confirma o quanto o problema dos abusos não tem raiz em algo sexual não trabalhado na formação inicial ou algum transtorno psico-sexual, é o progresso de uma vida empenhada em compensar as imaturidades da pessoa, onde pouco a pouco, ela vai escalando e piorando seus comportamentos sem que sua consciência moral acuse essas pioras.


Depois de algum tempo exercendo o ministério de modo medíocre e de acordo com suas imaturidades afetivas, a vida dupla e desequilibrada se estabelece, pequenos abusos de poder vão se tornando rotina e se intensificando, abusos espiritual e econômico, por vezes, também se fazem presentes.


Com o passar do tempo, com a prática de abusos onde a pessoa imatura e cada vez mais desequilibrada se sente ainda mais no poder da vida dos outros que ela percebe serem vulneráveis e que se sujeitam a ela, é que os abusos sexuais passam a ser uma realidade, eles são o fim de um progressivo caminho de desordem afetiva e de obscurecimento da consciência moral do indivíduo.



8. Todas as dioceses devem ter Centros de escuta e equipes que possam acolher denúncias e dar o prosseguimento canônico, civil e penal dos casos.


É papel da Igreja, indicado pelo Papa Francisco em seus documentos mais recentes sobre o tema, ter uma estrutura pastoral onde as pessoas que se sintam lesadas por comportamentos abusivos nas relações eclesiais, possam recorrer com facilidade, com discrição, tendo a certeza de que serão acolhidas com caridade, ouvidas com empatia e terão seus relatos encaminhados com justiça.


As Dioceses e famílias religiosas que não oferecem esse tipo de serviço aos fiéis está desobedecendo orientações claras dadas pelo Papa.



9. Não é uma situação que vai passar logo. Vai durar, pelo menos, toda a nossa geração.


Algumas pessoas, não suficientemente inteiradas da realidade, podem estar pensando que esse é um assunto de momento, que logo vai passar, que daqui uns cinco anos a pauta já será outra e outros problemas assumirão o centro das preocupações da vida eclesial. Essa expectativa não corresponde com a verdade ou a gravidade da situação.


Toda essa questão da vida eclesial mergulhada numa cultura onde abusos são permitidos, não denunciados e, em alguns casos, até incentivados através da vivência do clericalismo também da parte dos leigos, precisará dos esforços de, ao menos, uma geração empenhada na vivência das boas práticas, de relações mais servidoras e de uma dinâmica pastoral mais sinodal para que uma nova cultura se estabeleça e ponha fim nesta “cultura de abusos” que temos hoje.



10. É uma questão de conversão interior e não só de estrutura institucional.


Embora sejam necessários dispositivos canônicos e uma reforma institucional menos favorável ao clericalismo e à obediência cega, será a conversão pessoal e interior que possibilitará uma verdadeira e duradoura mudança.


Por isso é necessário falar sobre o assunto, conscientizar as comunidades, permitir que os sobreviventes de abusos sejam ouvidos e tenham suas histórias conhecidas, são esses os elementos que podem incentivar que os leigos, religiosos e clero passem a entender melhor a gravidade do tema e urgência de uma metanóia, de uma mudança de mentalidade e conversão interior profunda, que motive a mudança também dos comportamentos e estruturas.



11. O remédio eficaz para a cultura dos abusos é a sinodalidade.


O exercício de caminhada conjunta onde todos são escutados e escutam, onde se pode dizer o que se pensa e o que se sente, ainda que a decisão final seja função do ministro ordenado, é imprescindível para o combate da cultura dos abusos - onde as pessoas enxergam umas às outras como meios para a conquista de seus próprios interesses e não como irmãos, membros de um mesmo Corpo.



12. É mais do que importante, é necessário o envolvimento direto dos leigos no combate à cultura dos abusos.


Um dos elementos centrais da cultura de abusos é o clericalismo, que o Papa Francisco tanto tem denunciado ao longo dos anos. Esse acaba por corromper o modo de se relacionar dos ministros ordenados e religiosos com os leigos. Todo papel de autoridade é visto como algo vantajoso e que dá direitos sobre os outros. Passa-se a utilizar da função que se exerce como meio de impor as próprias vontades, gostos e ter vantagens.


Com o estabelecimento dessa cultura, por um lado, os leigos têm atitudes que incentivam que os padres sejam autoritários e que não haja sinodalidade, por outro, também leigos imersos no clericalismo, quando se percebem em um papel de coordenação ou destaque, passam a replicar os mesmos comportamentos abusivos na relação com outros leigos “inferiores” a si.


👉🏼 Os leigos podem ajudar a mudar a situação atual da Igreja na medida em que não incentivarem o clericalismo, favorecerem a sinodalidade e denunciarem os casos de abuso (econômico, espiritual, de poder ou sexual) dos quais tenham conhecimento.




Se quiser saber mais sobre o assunto você pode o que já comentei a partir de alguns filmes e séries:


E o que já postei de resenha de livros explicando:


Documentos recentes do Papa Francisco, com orientações:

* Os especialistas que deram palestra no evento foram:

-Cardeal Sean O’Malley: Arcebispo de Boston, membro do Conselho de Cardeais que assessora o Papa e Presidente da Pontifícia Comissão do Menor;


-Padre Andrew Small: Secretário da Pontifícia Comissão de Proteção do Menor;


-Padre Daniel Portillo Trevizo: Diretor do CEPROME, professor no Instituto de Antropologia da Universidade Gregoriana (onde há o curso sobre a Proteção dos menores na Igreja);

-Dr Yago de la Cierva: professor na Pontifícia Universidade Santa Cruz, em Roma, especialista nas áreas de comunicação jornalística e corporativa e de gestão de crises;


-María Inés Franck: leiga, membro do Conselho Pastoral para a proteção do menor, da Conferência episcopal argentina; diretora do CEPROME; e professora convidada no Instituto de Antropologia da Universidade Gregoriana;


-Dom Charles Scicluna: Arcebispo de Malta, tem uma longa experiência de trabalho na Cúria Romana, onde se destacou na investigação dos casos de abusos sexuais cometidos por membros da Igreja, teve papel fundamental na escuta das vítimas e gestão da crise no Chile;

-Monsenhor Jordi Bertomeu Farnós: Oficial da seção disciplinar da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão da Cúria vaticana que julga os casos de abuso;


-Padre Hans Zollner: Diretor do Instituto de Antropologia da Universidade Gregoriana, participa dos esforços eclesiais de combate aos abusos desde quando o Papa Bento XVI começou a trabalhar nesse âmbito;


-Ilva Myriam Hoyos Castañeda: doutora em Direito e com atuação em diversos órgãos eclesiais pontifícios e latino-americanos.


A oficina sobre criação de comunicados de imprensa foi dirigida por Dom Javier Acero, bispo auxiliar do México, e pelo Padre Emanuel Santana, assessor da Comissão Episcopal para a Pastoral da Comunicação da Conferência Mexicana.



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